O Poder das Palavras (com um sorriso da aldeia)
- Regina Ruivo

- 11 de jul.
- 3 min de leitura
A Maria foi minha aluna na escola primária de Vale das Fontes — uma daquelas aldeias tão pequenas que, se alguém espirra na praça, o eco responde três vezes e a vizinha do fundo grita logo “santinho!”.
Tinha 11 anos e já sabia mais da vida do que muitos adultos com ar de sabichões.
Vestia sempre a mesma camisola de lã que picava como urtigas, uma saia herdada por três primas e um casaco com mais remendos do que tecido original. Segundo a avó, era “roupa de luta”… e resistia mesmo a tudo. Até ao tempo!
Os sapatos? Bom… com a sola tão fina, a Maria já conhecia o caminho da escola com os pés — literalmente.
O nariz andava sempre num chafariz permanente e os cabelos longos pareciam um parque de diversões para piolhos. Tentei de tudo: loção, vinagre e até rezas herdadas da tia Laurinda. Nada. Os bichos já tinham feito morada — e talvez até pagassem renda.
Mesmo assim, era sempre das primeiras a chegar. Talvez para fugir ao reboliço de casa. Talvez pelo cheirinho da sopa da cantina. Ou talvez — só talvez — porque ali podia fingir que era apenas uma criança.
Mas, na hora dos trabalhos de grupo, ficava sozinha. Os outros — o Tozé, convencido que mandava tanto como o presidente da junta; a Aninhas, de tranças perfeitas; e o Vasco, que comia lápis como pipocas — torciam o nariz à Maria.
Eu, professora Aurora, tentava puxá-la para o grupo. Mas eles escapavam mais depressa do que pardais assustados.
E, no fim de cada dia, eu pensava:Qual é, afinal, o poder das palavras? Será que vale a pena contar contos de fadas a quem nunca viu um livro com capa dura?
Continuei a acreditar que sim.
Duas vezes por semana, lia-lhes histórias. Uma delas foi a da Cinderela. Quando a fada madrinha apareceu, varinha em punho e vestido cintilante, a Maria sorriu como quem vê um milagre. Aplaudiu — mas disfarçadamente.
Claro que a turma desatou a rir. A Maria encolheu-se. E eu… quase a abracei ali mesmo.
Uns dias depois, perguntei:
— E vocês, o que querem ser quando crescerem?
— Astronauta! — gritou o Tozé.
— Cabeleireira de cães! — disse a Aninhas.
— Jogador de futebol… ou padeiro, que dá mais jeito — disse o Vasco.
E a Maria? Levantou-se, com os olhos a brilhar, e disse:
— Eu quero ser médica.
Silêncio. E logo depois… gargalhadas. Até o quadro abanou. Mas a Maria sentou-se devagar. E não desviou os olhos do horizonte.
Anos depois, fui colocada de forma definitiva em Vale das Fontes.
E logo no autocarro… uma jovem de bata branca e sorriso conhecido:
— Professora Aurora! Ainda se lembra de mim?
— Maria?
— Sim. Aquela que queria ser médica. Pois bem… sou médica.
Fiquei tão pálida que me ofereceram um rebuçado. A Maria riu, deu-me um abraço e saiu na paragem do costume, com a bata a esvoaçar como capa de super-heroína.
Dias depois, passei na unidade de saúde.
— A doutora Maria? Já cá não está. Ganhou uma bolsa e foi para Itália. Aquela menina vai longe!
E eu saí dali com o coração em festa.
Afinal, talvez tenha sido a Cinderela. Talvez tenha sido o exemplo. Ou… talvez tenha mesmo sido o poder das palavras.
Porque a Maria, rodeada de pobreza e piolhos, tornou-se a médica mais dedicada que Vale das Fontes conheceu.
E eu?Eu já não queria ser só sua professora.
Queria que ela me explicasse como é que uma menina descalça aprendeu a voar.
Versão adaptada por mim a partir de uma história lida online, sem autoria identificada. Se alguém souber quem é o autor original, por favor diga — terei todo o gosto em dar o devido crédito.

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